sábado, 29 de junho de 2013

A memória

"O Nelson Mandela está a perder a memória e não vai lembrar-se nunca mais de que é um homem sagrado. Morrerá anónimo para si mesmo, indiferente ao mundo e ao quanto ajudou cada um de nós. Vai desconhecer como foi perseverante, como conquistou a lucidez, não vai saber da sua inteligência superior ou da magnitude da sua beleza.
Leio a notícia enquanto atravesso uma extensa sala de casino em Macau. A alcatifa florida engana o chão. Julga o chão que é perfumado, que vive de alguma forma, que sonha. Pousam as mesas e as cadeiras onde os homens obstinados agem automaticamente, como máquinas de estender e recolher fichas. Ausentes. Sem nada dentro. Penso que estou num lugar com corpos sem nada dentro e que o Nelson Mandela ficará assim, ausente, uma máquina de si mesmo apenas para respirar mais um tempo, até não respirar.
Faltava comover-me em Macau, se é verdade que me ando a comover nas terras todas. Passei de olhos no jardim do chão, a fazer de conta que o jardim se levantava e que punha o mundo bonito para que a minha tristeza fosse acudida pela sensibilidade que nos inspiram as coisas bonitas, as coisas vivas. Queria que a vida aparente fosse efectiva. Que a vida se inventasse por um desenho, se criasse pela semelhança.
Somos todos ainda feitos dos mais absurdos preconceitos. Ainda vamos na primária quanto ao respeito e à aceitação. Somos horríveis para as diferenças, os diferentes, sem entendermos que para sermos iguais disfarçamos tudo, para parecermos iguais. Somos contra os gordos e os feios, os sensíveis e as mulheres, somos contra os pretos, os amarelos e os vermelhos, os de olhos em bico, os morenos, os muito brancos, as loiras, as crianças, os funcionários do McDonalds. Somos contra toda a gente. Metemos nojo.
Eu queria ser merecedor do Nelson Mandela. Queria que, se algum dia me tivesse visto, pudesse achar-me imperfeito sem tragédia. Apenas imperfeito e muita vontade de chegar onde ele chegou: ao lugar puro de sentir, de pensar. O lugar puro de se ser. Quem se objectiva por menos, pensa mal da oportunidade de viver.
Quando as notícias vierem dizer que o Nelson Mandela já não sabe quem é, tenhamos a fortuna de lho dizer e de o dizer a toda a gente e para sempre. Quem não tiver a fortuna de saber acerca do Nelson Mandela anda vazio dos bolsos da alma. Tem muito menos hipóteses de se engrandecer à altura da incrível ocasião de existir. Penso assim, que são homens como ele que apontam o quanto é incrível existir. O resto pode ser apenas aparente. Um casino de flores falsas e gente perdida para dentro da sua própria couraça."

Casa de Papel, crónica
Valter Hugo Mãe
Revista 2, jornal Público, domingo, 24 de Março de 2013

quarta-feira, 26 de junho de 2013

sábado, 15 de junho de 2013

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Tuca

"Chama-se Tuca e é invisível. Chama-se Tuca e ninguém a vê. Chama-se Tuca e ninguém olha para ela ano após ano. Chama-se Tuca e ninguém a vê há 12 anos. 12 anos amigos!! São inúmeras as pessoas que visitam o albergue da União Zoófila em busca do cão ou do gato perfeitos. São visitas atrás de visitas que saem de lá sem encontrar a perfeição. Pois nós podemos garantir-vos uma coisa. Nunca ninguém irá encontrar a perfeição num animal doméstico enquanto não se aceitarem a vocês próprios como imperfeitos.
Tantas vezes nos perguntamos como chegam até ao albergue tantas pessoas que conseguem não gostar de nem um dos quase 800 animais que lá vivem? Como? Só podemos pensar que essas pessoas não sabem o que procuram nem o que querem. Só podemos pensar que há vidas, como a da Tuca, que são desperdiçadas só porque sim. 12 anos à espera que alguém se aproxime da box 87 e finalmente diga 'encontrei'. 12 anos. Não os deixem ser em vão."

Podem saber mais sobre a Tuca aqui -http://bit.ly/19VBwKn