quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Capítulo Um (parte)

«O chefe da aldeia, um homem de cinquenta anos, estava sentado no chão com as pernas dobradas e os joelhos afastados, no meio do aposento, junto do carvão que ardia numa lareira escavada na própria terra; inspeccionava o meu violino. Na bagagem dos dois “rapazes da cidade” que Luo e eu representávamos a seus olhos, era o único objecto do qual parecia emanar um sabor estranho, um aroma de civilização, capaz de despertar as suspeitas dos aldeões.
Aproximou-se um camponês com um candeeiro de petróleo para facilitar a identificação do objecto. O chefe colocou o violino na vertical e examinou o orifício negro da caixa, como um funcionário alfandegário minucioso que procurasse droga. ...
Levantando o violino à altura dos olhos, sacudiu-o com frenesim, como se esperasse que caísse alguma coisa do fundo negro da caixa de ressonância...
Quase toda a aldeia estava ali, na parte de baixo daquela casa assente em estacas e perdida no cimo da montanha. ...
O homem passou os dedos calosos por uma corda, depois por outra... A amplificação de um som desconhecido deixou a multidão petrificada, como se esse som obrigasse cada um dos presentes a uma espécie de respeito.
- É um brinquedo – afirmou o chefe solenemente.
Este veredicto deixou-nos sem voz. A Luo e a mim. Trocámos um olhar furtivo, mas inquieto. Perguntei a mim próprio como iria acabar aquilo.
Um camponês tirou o “brinquedo” das mãos do chefe, bateu com o punho na parte traseira e depois passou-o a outro homem. Durante alguns instante o meu violino circulou pela multidão. Ninguém se preocupava connosco, os dois rapazes da cidade, frágeis, magros, cansados e ridículos. ...
- Um brinquedo idiota- disse uma mulher...
- Não, um brinquedo burguês, vindo da cidade – rectificou o chefe.
Senti-me invadido pelo frio apesar da grande fogueira que ardia no meio da sala. Ouvi o chefe acrescentar:
- Temos que o queimar! ...
- Chefe, isso é um instrumento musical – disse Luo com um ar desenvolto. – O meu amigo é um bom músico, palavra.
O chefe voltou a pegar no violino e inspeccionou-o de novo. Depois, estendeu-mo.
- Lamento chefe – disse eu, embaraçado. – Eu não toco lá muito bem.
De repente, vi Luo piscar-me o olho. Espantado, peguei no violino e comecei a afiná-lo.
- Vai ouvir uma sonata de Mozart, chefe – anunciou Luo, com a mesma calma de sempre.
Aturdido julguei que ele enlouquecera. Há alguns anos que todas as obras de Mozart, ou de qualquer músico ocidental. Estavam proibidos no nosso país. Nos sapatos ensopados, os pés molhados estavam gelados. Eu tremia com o frio que me invadia de novo.
- O que é uma sonata? – perguntou o chefe, desconfiado.
- Não sei – balbuciei. – É uma coisa ocidental.
- Uma canção?
- Mais ou menos – respondi, evasivo. ...
- Como se chama ela, a tua canção?
- Parece uma canção mas é uma sonata.
- Estou a perguntar-te como se chama! – gritou, olhando-me de frente. ...
- Mozart... – respondi exitante.
- Mozart quê?
- Mozart pensa no presidente Mao – continuou Luo no meu lugar.
Que audácia! Mas foi eficaz. Como se tivesse ouvido algo milagroso, o rosto ameaçador do chefe suavizou-se. Os seus olhos enrugaram-se num grande sorriso beatífico.
- Mozart pensa sempre em Mao – disse ele.
- Sim sempre – confirmou Luo.
Quando puxei as cordas do meu arco, estalaram de repente aplausos calorosos à minha volta, que quase me meteram medo. Os meus dedos gordos começaram a percorrer as cordas, e as frases de Mozart regressaram ao meu espírito, como amigos fiéis. O rosto dos aldeões ainda à pouco tão duro, abrandava de minuto para minuto perante a alegria límpida de Mozart, como o sol ressequido debaixo da chuva, e depois, à luz bruxuleante do candeeiro de petróleo, foi perdendo os contornos.
Toquei durante algum tempo, enquanto Luo acendia um cigarro e fumava tranquilamente, como um homem.
Foi assim o nosso primeiro dia de reeducação. Luo tinha dezoito anos e eu dezassete.»
Dai Sijie, em “Balzac e a Costureirinha Chinesa”

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